Antônio Olavo, cineasta jequieense, destaque na retratação da raça negra e suas peculiaridades, bate um papo bem interessante conosco. Clique e saiba mais.

29/10/2020

JN: Jequié, depois de algumas décadas, volta a ter um cinema na cidade. Na verdade, dois. A inauguração de um deles está atrasada por conta da pandemia do Covid 19. O quão é importante esse fato para a Cidade Sol na sua visão?

Antônio Olavo: O cinema é uma linguagem artística de grande importância pois é capaz de mexer com pensamentos, gerando reflexões que podem estimular mudanças, muitas vezes profundas, na vida das pessoas. A cultura do cinema de há muito se tornou universal e faz parte do imaginário de centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo. Jequié sempre teve uma forte ligação com o cinema. Quando eu era adolescente, isso nos anos 1970, frequentei 3 cinemas em Jequié: Cine Auditorium, Cine Jequié e o Cine Bonfim. Para toda nossa geração, frequentar esses locais era um programa obrigatório dos finais de semana e isso fez parte de nossa formação cultural, política, social....  Atualmente, mesmo com as imagens em movimento circulando em muitas outras plataformas (TV, computador, celular….) o espaço sagrado da sala de cinema é uma experiência insubstituível. Então a existência de salas de cinema é importante para qualquer cidade, e eu ousaria mesmo dizer, que um dos fatores definidores do grau de cultura que se incentiva e se preserva numa cidade, está diretamente relacionado a quantidade de salas de cinema que ela possui. 

 

JN: O cinema é libertador. A arte nos faz refletir. Pensando ainda sobre a ação do cinema em si, mas agora numa esfera maior. Como essa sétima arte pode nos ajudar a pensarmos melhor diante de um contexto tão extremista na atualidade no Brasil, principalmente na sua política?

Antônio Olavo: Eu considero que a atual onda conservadora vivida no Brasil é reveladora do caráter da sociedade brasileira. O Brasil sempre foi um país conservador, e atualmente essa condição está explicita, a vista de todos. Repare que o Brasil estabeleceu sua independência com a monarquia, foi um dos últimos do mundo a extinguir a nefasta e cruel escravidão negra, após mais de 350 anos, e proclamou uma República, nada democrática, tardiamente em 1889, além de ter vivido longos períodos de obscurantismo político e social, com as ditaduras do Estado Novo, a Ditadura Militar .... e foi quase sempre governado por uma elite branca racista e corrupta, que o levou a esta triste realidade de profundas desigualdades sociais e raciais ainda existente. Esses e muitos outros fatos nos levam a esta constatação de que a sociedade brasileira é estrutural  e essencialmente conservadora. Somente duas coisas podem mudar esta triste realidade: Educação e Cultura. Isso porque mudar essa situação requer mudanças de mentalidades, e isso somente a cultura e a educação possibilitam, pois são práticas que fazem pensar e o pensamento transforma. Dentro desse processo o cinema tem um lugar de destaque, pois é motivador de ações transformadoras, que podem contribuir para a construção de uma sociedade justa, na qual eu acredito e trabalho com meu fazer cinema para isso.

 

JN: O seu trabalho como diretor tem um grande vetor indagador, especialmente quando o assunto é a negritude e suas peculiaridades: a força da raça negra; preconceitos; injustiças entre outros. Faça uma síntese das suas obras e do que você tem intensão de apresentar.

Antônio Olavo: Meu trabalho busca contribuir com a valorização da memória social e particularmente com a Memória Negra na Bahia e no Brasil. Creio isso ser importante posto que no Brasil a maioria da população é afrodescente e no entanto esta maioria não tem a representatividade equivalente nos espaços de poder e de bem estar da sociedade. A história do povo negro não se limita a história da escravidão, ao sofrimento, humilhação, a dor.... isso tudo existiu mas não foi somente isso, a história do povo negro é uma história sobretudo de resistência e luta, uma jornada de grandes e gloriosas lutas, muitas derrotadas... muitas vitoriosas, mas todas dignas e emocionantes.

Buscando contribuir com essa transformação e utilizando o cinema como minha profissão e instrumento de expressão dos meus sentimentos, em 1993 dirigi meu primeiro filme longa metragem, “Paixão e Guerra no Sertão de Canudos”, um documentário que registra a trajetória de Antonio Conselheiro e do povoado de Canudos, uma das mais belas passagens da aventura humana. Em 2004 fiz “Quilombos da Bahia”, filmando em 69 comunidades quilombolas localizadas em 28 municípios do Estado da Bahia. Esse filme contribuiu muito para rasgar o véu que cobria a existência dessas comunidades negras. Quatro anos depois, em 2008, dirigi meu terceiro longa, “Abdias Nascimento Memória Negra”, que registra a quase secular trajetória da Abdias Nascimento, um dos mais importantes líderes pan-africanista do mundo, cuja história de vida se confunde com a história das lutas do povo negro no Brasil no século XX. Em 2014 foi a vez de “A Cor do Trabalho”, um filme que reconstrói uma linha do tempo da história do trabalho negro na Bahia, buscando positivar essa longa trajetória. Em 2017 fizemos uma série em cinco episódios, denominada “Travessias Negras”, na qual apresentamos a história de vida de jovens negros/negras, moradores de periferia e oriundos de famílias de baixa renda, que adentraram a Universidade Federal da Bahia nos chamados “cursos nobres”, graças as políticas de ações afirmativas, mais particularmente a política de cotas para afrodescendentes. Meu último filme foi “1798 Revolta dos Búzios”, lançado em 2018. Esse foi o mais demorado e mais exaustivo, que me necessitou de 13 anos para sua conclusão. Ele é um registro documental sobre a grandiosa conspiração republicana ocorrida na Bahia no final do século XVIII, mais precisamente em 1798, que levantou as bandeiras da Independência, da República Democrática e do fim da Escravidão. Esse movimento é mais importante que a Inconfidência Mineira, por suas bandeiras, sua composição social e pelo final trágico com o enforcamento de 4 jovens negros: Luiz Gonzaga, João de Deus, Lucas Dantas e Manuel Faustino.

 

JN: E sua ligação com Jequié... Infelizmente, muita gente desconhece o quanto a nossa terra é rica na sua composição cultural. Conte-nos mais sobre isso.

Antônio Olavo: Nasci em Jequié no ano de 1955. Meu pai, também chamado de Antonio Olavo, tinha um bar na avenida Alves Pereira, era o Bar London Coffe. Estudei no IERP, e ao completar 18 anos fui para Salvador em busca de melhores horizontes. Deixei muitos parentes, mas o núcleo familiar foi todo embora pra capital. Em Salvador, comecei a trabalhar com cinema em 1975, tinha então 19 anos. E desde então estou nessa lida. E em 2005, voltei a Jequié pra lançar o filme “Quilombos da Bahia”, no Centro Cultural do antigo Jequiezinho, e foi uma felicidade grande ver mais de 300 pessoas assistindo e aplaudindo o filme. Desde então tenho voltado com regularidade a Jequié, sempre participando das Semana da Pertença Aficana, promovida pelo ODDERE/UESB, que faz um trabalho maravilhoso na cidade. 

 

JN: Como estão os seus projetos, fale mais do seu trabalho, de como está a sua vida.

Antônio Olavo: Atualmente estou concluindo meu 6º filme longa metragem, chama-se “Ave Canudos os que sobreviveram te saúdam”, sobre os sobreviventes da Guerra de Canudos, que a historiografia tradicional afirmou estarem todos mortos. Nesse filme iremos fortalecer um movimento de resgate desses sobreviventes, apresentando evidências fatuais de que centenas, talvez milhares de pessoas sobreviveram a guerra, ou por terem fugido antes do cerco final, ou por terem sido aprisionadas e trazidas para as cidades circunvizinhas e mesmo para Salvador. Iremos lançar no próximo ano. E assim eu sigo fazendo o que gosto, o que me mobiliza, o que me encanta, com a consciência tranquila de sempre estar ao lado daquelas e daqueles que travam a luta milenar contra os preconceitos raciais, contra as desigualdades sociais, por uma vida digna para todas e todos, e na busca de construir um mundo justo e solidário, que virá.