O jequieense Mestre Dicinho, artista do tropicalismo que criou capa de Gal, ganha exposição em São Paulo

28/08/2023

SÃO PAULO: "Pinta esculpindo e esculpe pintando." Assim o artista Ayrson Heráclito define o trabalho de Adilson Costa Carvalho, seu colega de profissão. Carvalho, ou Mestre Dicinho, como é conhecido, é o tipo de talento que transita entre tantos mundos diferentes que é difícil chegar a uma definição precisa para o seu trabalho.

Nascido em Jequié, na Bahia, Dicinho esteve no centro da efervescência cultural da tropicália e participou dela de forma ativa, ao se unir artística e politicamente a Waly Salomão e outros conterrâneos.

Desde então, atua na pintura, na escultura, na cenografia, no figurino e na performance. Criou a coreografia "O Quebra", que apresentou diversas vezes na casa de vidro de Lina Bo Bardi, e trabalhou com Jards Macalé e Zé Celso. É também o artista por trás da icônica capa do disco que Gal Costa lançou em 1969, com ilustrações psicodélicas.

Apesar de sua atividade intensa desde a década de 1960, Dicinho esteve relativamente distante do circuito comercial das artes visuais, e sua produção escapou do radar de galerias e museus. De acordo com a artista e galerista Maria Montero, o destino da maioria das peças que o artista criou antes dos anos 2000 é desconhecido. Montero é fundadora da galeria Sé, que agora traz à cidade obras que Dicinho produziu nos últimos 25 anos. " Praticamente tudo o que ele tem no ateliê está aqui", comenta Maria.

Entre as peças está um conjunto de quadros tridimensionais. As telas abstratas apresentam a precisão geométrica de Mestre Dicinho. Entre tons pastel e paletas monocromáticas, elas ganham uma camada a mais de profundidade no jogo de luz e sombra criado pela volumetria. O quadro "O Corvo" faz a ponte temática para outra vertente das obras na galeria, as esculturas de animais.

As estátuas seguem geometrias precisas. Para alcançar o feito, o artista usa técnicas autorais. Ao longo dos anos, Dicinho desenvolveu sua própria massa de modelar, assim como ferramentas específicas para recorte e o método "copageti" —acrônimo para cola, papel, gesso e tinta—, derivado do papel machê.

Questionado sobre esse espírito inventor, Mestre Dicinho lembra a influência de seu pai, Vavá. "Quando quebrava alguma coisa em casa, como um bule, meu pai raramente saía para comprar. Ele buscava folhas de flandres e estanho e criava algo novo", afirma o artista

A aparente racionalidade dos animais geométricos contrasta com a abstração das formas e pinturas das obras. Dicinho cria padrões que remetem a seus trabalhos psicodélicos, mas em uma versão pontilhista, relativamente comportada. O artista revela que algumas dessas peças levaram cerca de oito meses para serem concluídas. "Eu vou mudando a textura, e essa fase [do pontilhismo] foi uma época em que eu enlouqueci. Demorava muito para terminar uma obra."

Seu jeito de falar transparece a paciência que emprega em seus trabalhos. O artista é adepto da macrobiótica, uma dieta que demanda maior dedicação de tempo ao alimento, do cozimento à mastigação. Sobre sua produção, Dicinho afirma que trabalha "como Caymmi", fazendo referência aos longos processos criativos do músico. "Caymmi demorava anos para fazer uma canção porque queria a palavra certa no lugar certo, como se ela tivesse estado sempre ali" comentou em 2008 o poeta e antropólogo Antonio Risério, em artigo especial para a Folha.

Um baobá, com galhos retorcidos, põe o público em outra perspectiva da produção do artista. Dicinho é uma figura engajada e não dissocia a política de sua arte. Sobre a escultura da árvore, afirma que "foi feita em uma época em que o Brasil estava atravessando momentos dificílimos com Bolsonaro". "Cada galho surgia de uma das coisas estúpidas que ele falava. Aquilo me deixava sem prumo."

A casa que abriga a galeria Sé está aninhada em uma das cada vez mais raras —mas sempre charmosas— vilas de São Paulo; esta, especificamente, construída pelo arquiteto Flávio de Carvalho. Ele próprio foi também um artista versátil e pode com facilidade ser considerado a um só tempo cenógrafo, dramaturgo, decorador, pintor e escritor.

A relação entre os dois artistas é inevitável. Por motivos diferentes, a arte de Dicinho é mutável como a de Flávio. Ambos demonstram facilidade para encerrar um ciclo e iniciar outro. Mais importante, conseguem demonstrar coerência nesse processo.

A mostra é o topo do iceberg da produção do artista.

 

Caio Sens / Folha Uol